A inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas
publicado por: www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4740-A-inconstitucionalidade-do-art-28-da-Lei-de-Drogas
Autor: Roberto Soares Garcia
Palavras iniciais
O Supremo Tribunal logo apreciará questão
controversa: diante dos direitos fundamentais à intimidade e à vida
privada, tendo ainda como vetor o princípio constitucional da lesividade
a balizar o Direito Penal, é válido dispositivo legal que define como
crime o porte de drogas ilícitas para uso pessoal?
Para colaborar, o IDDD, pelo Presidente de seu
Conselho, Arnaldo Malheiros Filho, pelos Presidente e Vice da Diretoria,
Marina Dias e Augusto de Arruda Botelho Neto, bem como pelo autor do
presente texto, pleiteou e obteve admissão como amicuscuriae no
RE 635.659-SP, postulando no sentido de que a resposta à pergunta supra
deve ser negativa. O texto que segue é um resumo (nada breve) do que lá
se encontra,(1) com a desvantagem de que aqui seguem pitacos e
inevitáveis cortes de responsabilidade exclusiva deste escriba.
Descriminalizar não é sinônimo de legitimar
Bom destacar que não se discutirá a liberação do uso
de substâncias hoje proibidas. A reflexão buscará tão só demonstrar que
o art. 28 da Lei de Drogas ataca a Constituição, posto que o porte para
consumo próprio de substâncias ilícitas não pode ganhar tipicidade
penal sem violar o inc. X do art. 5.º da CR, constituindo, também,
maltrato ao princípio da lesividade penal.
Liberdade, intimidade e vida privada na Constituição
O inc. X do art. 5.º da CR, asseveraque “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação”. Confere-se ao “cidadão o direito de impedir que intrusos venham intrometer-se na sua esfera particular”,(2) considerada “como conjunto de modo de ser e viver, o direito de o indivíduo viver sua própria vida”;(3) legitima “a pretensão de estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras pessoas”,(4) reconhecendo-se o “direito à liberdade de que cada ser humano é titular para escolher o seu modo de vida”.(5)
A garantia “traduz-se na previsão de que o
indivíduo mereça do Estado e dos particulares o tratamento de sujeito e
não de objeto de direito, respeitando-lhe a autonomia, pela sua simples
condição de ser humano. Assim sendo, incumbe ao Estado garantir aos
indivíduos a livre busca de suas realizações de vida pessoal”,(6) pois “ninguém
pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de
viabilizar o projeto de sociedade alheio (...). A funcionalização é uma
característica típica das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo
serve à coletividade e ao Estado, e não o contrário”.(7)
Ao falar em respeito à vida privada, está-se a tratar, no fundo, de liberdade. E “o
índice de liberdade de uma sociedade se mede pela autonomia concedida
aos seus cidadãos para decidirem por si mesmos o seu próprio destino.
(...) Espaços de liberdade não são dados, mas diariamente conquistados.
Conquistados contra usurpações, sufocamentos, sobretudo quando o Estado
intervém em nome de um bem supostamente maior, como uma ‘informação mais
democrática’ ou a saúde dos indivíduos”.(8)
Ora, “é indispensável que a pessoa tenha ampla liberdade de realizar sua vida privada, sem perturbação de terceiros”.(9) Afinal, “laconducta
realizada en privado es lícita, salvo que constituya un peligro
concreto o cause daños a bienes jurídicos o derechos de terceiros”(10) e “ninguém,
a não ser o próprio homem, é senhor de sua consciência, do seu pensar,
do seu agir, estando aí o cerne da responsabilidade. Cabe ao Estado
propiciar as condições desse exercício, mas jamais substituir o ser
humano na definição das escolhas e da correspondente ação. (...)
Portanto, a liberdade constitucionalmente assegurada implica a
existência de uma permissão forte, que não resulta da mera ausência de
proibição, mas que confere, ostensivamente, para cada indivíduo, a
possibilidade de escolher seu próprio curso (...). O reconhecimento de
umapermissão forte ao exercício de
uma vontade livre e autônoma traz uma consequência importante: do ponto
de vista sistemático, dada a hierarquia constitucional, uma verdadeira
derrogação prévia de normas de hierarquia inferior que tendam a ensejar
seu impedimento (...)”.(11)
Em síntese: diante do inc. X do art. 5.º da CR, a
liberdade do indivíduo, senhor de sua consciência, de suas escolhas e
ações, é absoluta desde que exercitada na intimidade, sem atingir
terceiros; por seu turno, estabelecida a amplitude da garantia que
confere ao homem seu espaço de cidadania, o Estado tem o dever de omitir
ingerências na vida privada do titular do direito; as intromissões
havidas são inconstitucionais.
Limite ao Direito Penal
É óbvio que a garantia constitucional de
inviolabilidade da intimidade e da vida privada impõe ao Direito Penal o
limite expresso na parêmia nulla poena, nullum crimen, nulla expoenallis, sine iniuria, que, inspirado em fontes clássicas do saber, “vêem no dano causado a terceiros as razões, os critérios e a medida das proibições e das penas”.(12)
Sem que dano se verifique, é ilegítima a intervenção criminal, ideia
que encontra respaldo do próprio ordenamento que estabelece graduação
dos delitos de acordo com seu potencial ofensivo (inc. I do art. 98 da
CR), além de prescrever que a existência de crime depende da ocorrência
de resultado (art. 13 do CP).
Tanto é esse o melhor entendimento, que nosso
ordenamento jurídico não contempla os crimes de tentativa de suicídio ou
de autolesão corporal. Afinal, “pelo menos do ponto de vista do
direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de
irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem
diretamente a pessoa ou a propriedade alheias”.(13)
Portanto, é absolutamente inconstitucional, ex vi do inc. X do art. 5.º da CR, a previsão de crime cuja conduta tipificada não extravase a vida privada do agente.
A Constituição e o art. 28 da Lei de Drogas
Hora de olhar para o tal art. 28: “Quem
adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas
(...)”. Transbordando a ação para terceiros, não há mais falar em
“consumo pessoal”. Para a conformação típica, presume-se o isolamento
dos efeitos da conduta no próprio agente. Todo o cenário contemplado no
art. 28 pressupõe a não irradiação do fato para além da murada da vida
privada, ambiente este que está protegido pelo inc. X do art. 5.º da CR,
e, por isso, não pode ser objeto de criminalização.
Pondere-se ainda que, sendo a posse para o uso
pessoal da droga ilícita os limites do próprio tipo, a saúde do usuário
será a única a sofrer abalo. Por sua vez, a Constituição confere ao
indivíduo direito à saúde (art. 6.º, caput), competindo ao
Estado o dever de fornecer os meios para a realização do direito. Como
se viu, o art. 28 da Lei de Drogas convola esse direito em obrigação e
pune o cidadão por abrir mão de seu exercício, o que, por si, faz da
criminalização solução teratológica. Afinal, sanção, na acepção de
punição, deve ser consequência reservada a descumprimento de dever, e o
consumidor não descumpre dever ao drogar-se.
Ademais, a introdução por ameaça de sanção criminal
ao indivíduo de valores sociais tidos por majoritários é própria de
sociedades totalitárias. A manutenção de um homem livre de impurezas,
assim consideradas por critérios identificados com a Moral dominante,
não é admissível sob a vigência do Estado de Direito, em sociedade
democrática como é a brasileira de 2012.
Não se ignora a inexistência de direitos absolutos.
Mesmo as garantias fundamentais cedem espaço à atuação de outras de
igual hierarquia, limitando-se mutuamente. A intimidade e a vida privada
não são direitos ilimitados; podem ser restringidas, como de fato são,
quando se deparam com outros direitos fundamentais em aparente confronto
como, por exemplo, na tensão “liberdade de imprensa x
intimidade”, em que esta cede espaço àquela.(14) O que não se admite é a
existência de norma infraconstitucional que, por si só, diminua a
eficácia de direito fundamental. Interessa, então, verificar se há na
Constituição bem protegido pelo art. 28 da Lei de Drogas que tenha
dignidade para limitar o disposto no inc. X do art. 5.º da CR.
Alguns julgados firmam que “a razão jurídica da
punição da posse de substância tóxica proibida é o perigo social que
decorre de tal conduta, colocando em risco a saúde pública (...)”,(15)
sendo esta o bem jurídico que tradicionalmente se afirma tutelado pela
norma em apreço. Parta-se do princípio saudável ao aprimoramento
científico de que as palavras têm sentido; atente-se, então: a ideia de
“público” não se confunde, antes se contrapõe, a “individual” ou
“privado”. Um se conceitua como a exclusão do outro: é público o que não
é individual ou privado; e
vice-versa. Já se viu que integra o tipo do art. 28 a
exigência de que o porte se destine exclusivamente ao indivíduo, único a
suportar as chagas do consumo; contraditoriamente, a orientação
destacada afirma que o bem tutelado seria a saúde pública. Há, portanto,
divórcio absoluto entre o bem jurídico anunciado como digno de tutela, a
saúde pública, e aquele que acaba efetivamente sendo atingido pelo
tipo, a saúde do indivíduo, o que cheira a inconstitucionalidade, já que
“o legislador, mormente no âmbito penal, não é nem pode ser
onipotente, pois as incriminações que cria e as penas que comina devem
guardar relação obrigatória com a defesa de interesses relevantes”.(16)
Não se diga que a ancoragem constitucional do
dispositivo estaria nos valores constitucionais “segurança” ou “paz
social”. É que, admitidos como aptos a amparar a criminalização, todas
as leis penais estariam de antemão legitimadas. “Segurança” e “paz
social” não podem servir, por si, para amparar tipificação penal, sob
pena de, avançando-se no nível de abstração do conceito de bem jurídico
tutelado, levar o controle de constitucionalidade baseado na
proporcionalidade à ineficácia.(17)
Em resumo, tem-se em jogo, de um lado, a garantia
inscrita no inc. X do art. 5.º da CR; de outro, o art. 28 da Lei de
Drogas atua solitário, sem amparo em norma de calibre constitucional.
Nessas condições, resulta evidente desequilíbrio, e daí sai a
inconstitucionalidade do art. 28 tanto já referido. A
inconstitucionalidade é mesmo flagrante!
Palavras finais
A dependência e o uso eventual de substâncias
tóxicas não são passe-livre para a prática de crimes. O ordenamento
prevê rigor para o crime praticado em estado de embriaguez preordenada
(inc. II, letra l, do art. 61 do CP), bem como define que,
praticado delito quando o agente estava incapacitado de entender a
ilicitude do fato ou de se determinar de acordo com essa compreensão, o
juiz encaminhá-lo-á para tratamento (parágrafo único do art. 45 da Lei
de Drogas). Não provada a doença, seguir-se-á responsabilização penal.
A imposição de trato criminal aos dependentes, diante da doença instalada e ativa, é vedada pelo inc. XLVIII, letra e,
do art. 5.º da CR, por sua inútil crueldade. Se o indivíduo, tomado
pela dependência química, demonstrar-se inadequado ao convívio social,
sem contudo atingir terceiro, o ordenamento confere à sociedade os
instrumentos da internação involuntária ou compulsória (Lei
10.216/2001). Longe da vida social, o doente será tratado e apenas
retornará quando estiver apto a conviver adequadamente.
Excluído o crime do art. 28 da Lei de Drogas, o
atual quadro normativo é absolutamente satisfatório. O tráfico
continuará a ser crime; as drogas encontradas pelas ruas serão
apreendidas, vez que ilícitas (arts. 1.º e 2.º da Lei de Drogas); os
usuários não dependentes serão responsabilizados pelos danos e riscos
que causarem a terceiros; desde que o dependente químico ou o usuário
eventual de drogas a ninguém incomode, o C. Tribunal Supremo,
reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006,
permitirá que seja deixado em paz pelo Direito Penal, como o Direito
Penal, afinal, deixa em paz os cidadãos que não importunam terceiros.
Notas:
(1) Cf. teor em .
(2) Costa Jr., Paulo José da. O direito de estar só – tutela penal da intimidade. 2. ed. São Paulo: RT, 1995. p. 32.
(3) Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: RT,1990. p. 185.
(4) Mendes, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 379.
(5) Voto da Min. Cármen Lúcia, ADI 132-RJ, j. 05.05.2011.
(6) Voto do Min. Luiz Fux, ADI 132-RJ cit.
(7) Voto do Min. Marco Aurélio, ADI 132-RJ cit.
(8) Rosenfield, Denis Lerrer. Liberdade à savessas. O Estado de S. Paulo, 12.03.2012, p. A2.
(9) Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit., p. 185.
(10) Palavras de Ricardo Luis Lorenzetti, Juiz da
Corte Suprema Argentina, proferidas no precedente “Arriola, Sebástian” –
causa n. 9.080, registro A.891.XLIV, p. 31.
(11) Ferraz Jr., Tercio Sampaio.Direito constitucional – Liberdadede fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007. p. 195-196.
(12) Ferrajoli, Luigi. Direito e razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 373.
(13) O trecho é de: Morris, Norvale Hawkin, Gordon J., extraído de The Honest Politician’s Guide to Crime Control,
encontra-se em parecer de: Dotti, René Ariel. Revista eletrônica de
acesso restrito – imputação dos crimes previstos nos arts. 228 e 230 do
CP,RT 818/456.
(14) Cf., entre outros exemplos, STF, ADPF 130, rel. Min. Carlos Britto, j. 30.04.2009.
(15) TACrimSP, rel. Juiz Machado Araújo, Jutacrim 56/316, apud Silva Franco, Alberto et al. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 1995. p. 7 49.
(16) Reale Jr., Miguel. Instituições de direito penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. vol. I, p. 29-30.
(17) Nesse sentido, são inestimáveis as lições do voto do Min. Cezar Peluso, no RHC 81.057-8, STF, 1ª T., rel. para acórdão Min. Sepulveda Pertence, j. 25.05.2004.
Roberto Soares Garcia
Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Advogado.
Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Advogado.